Do reencontro ao “vamos morar juntos”
O ponto de partida do mangá de Shoko Rakuta é simples, mas certeiro: Kanade Kitagawa, 26 anos, editor de livros de culinária em Tóquio, reencontra por acaso o amigo — e crush inconfessável — do ensino médio, Mashiro Asakura. Oito anos antes, quando Mashiro transferiu-se de Tóquio para o interior, eles se tornaram inseparáveis. Kanade, que já se aceitava como gay, apaixonou-se imediatamente, mas enterrou o sentimento por medo do pai conservador e pela própria homofobia internalizada.
No presente, Kanade é especialista em sabotar relacionamentos: inventa ficantes, mente sobre a própria sexualidade e evita qualquer vínculo emocional enquanto se enterra no trabalho. Mashiro, ao contrário, ressurge radiante — estável profissionalmente, carismático e determinado a reconstruir a amizade. O plot inicial gira em torno de dois choques: Kanade vê a oportunidade de consertar o passado; Mashiro percebe que, mesmo sem nunca ter pensado sobre homens de forma romântica, ama Kanade e diz isso em voz alta.
As confissões inflam o primeiro volume: Kanade precisa acreditar que o “eu te amo” de Mashiro é romântico, não apenas fraternal. O segundo volume aprofunda o namoro — idas ao cinema, crises de ansiedade, beijos tímidos. No terceiro, publicado originalmente como uma sequência direta (e lançado no Brasil sob o mesmo selo), eles enfrentam o teste supremo: morar juntos num apartamento minúsculo, dividir contas, decidir quem lava a louça e, principalmente, contar aos pais que estão juntos.
Entre homofobia e expectativa paterna
Rakuta recusa o modelo em que a sexualidade é o único conflito. A homofobia existe — externa e interna — mas não monopoliza a trama. Um exemplo marcante acontece no volume 1, quando uma colega de trabalho descobre que Kanade inventou uma “namorada” para escapar de investidas femininas. Ela o pressiona a assumir-se para “não magoar a colega” que levou o fora: Kanade responde que desilusões fazem parte da vida e que ele não deve nada além de honestidade básica a quem mal conhece. É uma defesa simples, mas empoderadora, porque desloca o discurso do “você deve se assumir para confortar os outros” para “você escolhe quando e para quem se assume”.
No volume 3, Kanade finalmente conta aos pais. O pai fica menos chocado com o fato de o filho ser gay do que com o desmonte de expectativas: não haverá netos biológicos, não haverá nora, não haverá continuidade do “modelo familiar” que imaginou. A autora trabalha o diálogo com pausas incômodas, silêncios entre linha e balão, mostrando o peso de décadas de sonhos paternos desmoronando. Não há discurso inflamado nem reconciliação instantânea; existe, sim, um começo de entendimento, e Kanade sai dali mais leve por ter dito a verdade.
Mashiro e a mãe que não sabe soltar
A outra linha dramática envolve Mashiro e a mãe, que desde a morte do marido tornou-se emocionalmente abusiva. O roteiro sugere até traços de dependência doentia: telefonemas madrugada adentro, ameaças veladas de suicídio (“vou me jogar da ponte se você não vier”). No volume 2, Mashiro confessa que a mãe nunca permitiu que ele criasse um círculo de amizades saudáveis — daí a felicidade delirante de reviver laços com Kanade. Na visita à avó (volume 3), ficamos sabendo que tratamento psiquiátrico e remédios suavizaram as crises. Rakuta não dá respostas fáceis, mas mostra Mashiro demarcando fronteiras emocionais: ele atende às ligações urgentes, mas se recusa a deixar que a culpa controle sua vida amorosa.
Sexo: gargalhadas, inexperiência e cuidado mútuo
Quando Kanade e Mashiro finalmente transam — parte final do volume 3 —, a cena foge dos lugares-comuns do BL: nada de clichê de semiconsentimento ou salto de páginas para o pós-cama. Rakuta dedica painéis a preservativo, nervosismo, falha de coordenação. Os dois riem do atrapalho, perguntam se o toque incomoda, ajustam ritmo. Há prazer, sim, mas não desconectado da vulnerabilidade. O resultado é erótico sem ser pornográfico, terno sem ser infantilizado.
E depois da declaração de amor?
Viver junto exige negociar “quem passa no mercado”, “quem paga a conta de gás”, “quem liga para a seguradora quando o chuveiro pifa”. O mangá acerta ao mostrar que, depois do clímax emocional, vem o trabalho diário de manter a chama acesa. Mashiro é mais bagunceiro; Kanade é maníaco por organização. Eles falam sobre finanças, sobre futuro, sobre opção de adoção. Esses diálogos trazem respiro cômico e consolidam o sentimento de “relacionamento adulto”, raridade no gênero.
Arte e edição
O traço limpo de Rakuta combina lineart delicada com tramas sutis — perfeito para close-ups de mãos trêmulas, olhares desviados e sorrisos envergonhados. O ponto fraco: alguns coadjuvantes se parecem demais, e a altura de Mashiro varia um ou dois centímetros conforme o quadro. Nada que comprometa a leitura, mas vale a nota.
Conclusão
Stay By My Side After the Rain é mais que “história de sair do armário”: é sobre amadurecer, amar sem manual e encarar fantasmas herdados dos pais. Nos três volumes iniciais, Rakuta constrói uma jornada emocional redonda, intercalando humor, tensão e afeto genuíno.
Nota final: 9 — um BL para quem busca representatividade sensível, personagens falhos e um romance que não termina no primeiro “eu te amo”.